terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

O Conto de João Olhos no Mar



1. João. Ó João...
    Ah, onde é que te meteste filho de um ...
    Ó, João...
    João, vai à "auga".
    Ó, João...
    Vai dar milho às galinhas.
    Arre! Onde se meteu o malandro...
    Ó, João...
    Vai levar o comer ao teu pai.
    Ó, João...
    Vem cá João, olha que apanhas porrada.
    João ...

2. João tem nove anos.
    Nove anos de vida, de lama, de charco, de choro.
    Onde estás tu João? agora pergunto eu.
    João está sentado no alto do açude que fica por detrás da fila de barracas,
    ao fundo da azinhaga.
    João não ouve chamar. João apenas sente o sol bater-lhe de chapa na cara;
    semicerra os olhos para ver mais longe; João não vê as podres casas de madeira
    que se espalham a seus pés; não vê nada que 
    seja miséria; João está cego na sua paisagem mais real.
    Nos seus nove anos, João sonha apenas com um brinquedo qualquer de felicidade,
    mesmo fortuita. 
    João não vê, mas finge ver o mar. Esse mar azul distante como o verde dos seus olhos.
    Que estará por detrás do mar ?
    João não ouve, sonha e não quer despertar.
    Súbito, uma forte cutilada no pescoço lembra-lhe de novo a existência de algo
    mais real e cruel - o  Mundo.
    João sentiu a pancada seca. Olhou de lado e viu a figura da mãe, pesada, corpulenta,
    bestial no tratar, cara enrugada, mas olhos amantes.
    - Então, João, não ouviste chamar ?
    Queres apanhar com o tamanco ?
    Deixa o teu pai chegar e eu logo lhe direi; talvez então ouças melhor ao som da porrada.
    João salta do seu poiso e foge.
    -Anda cá João.
    Tu não ouves ? Anda cá.
    Ai se eu te apanho...
    João...
    João desaparecera, entretanto, atrás do açude.
    A mãe grita, mas já não o consegue ver. Corre. João, no entanto, mais lesto, desaparece.

3. São dez e meia da noite.
    Na barraca ao fundo da azinhaga ainda se encontra aceso o tosco candeeiro a petróleo.
    João ainda não apareceu.
    Entremeando o choro gritado da mães ouvem-se as palmadas secas do pai que,
    meio embriagado - pois à saída do trabalho tinha ido com os amigos - dá largas à sua
    loucura agredindo a pobre mulher.
    Que fazer?
    Esquisita forma de mostrar carinho e temor. No meio da pancada, da brutalidade,
    aqueles dois seres, nos gestos quase primitivos, demonstram o seu carinho e o seu cuidado
    pelo filho desaparecido.
    A algazarra atrai os vizinhos.
    Em frente da casa de madeira e zinco, e lata, e lama, uma pequena multidão de homens,
    mulheres e crianças assiste, confirma e opina sobre o acontecimento.
    Ao fim de meia hora, a história contada aos que a pouco e pouco vão chegando é uma
    sombra da realidade :
    "João fugira de casa aliciado por um homem de vida duvidosa e que o levara não sei para onde
    para fazer não sei o quê".
    Era difícil a toda aquela gente pensar noutra hipótese. João nunca fugiria porque uma criança
    não pode fugir ; porque a criança só tem de obedecer e construir-se a mesma sombra
    que os pais se construíram.   
    Quase uma imposição de clã.
    Entretanto a mãe chorava, o pai batia, os vizinhos assistiam e João não aparecia.
    Opina uma velha :
    - Vão à polícia, ao hospital ...
    - É isso, é isso ...
    Pai e mãe correm porta fora, rompendo entre os circunstantes.
    É preciso encontrar o seu João.

4. Fizera-se manhã.
    João não aparecera. Nada na polícia, nem no hospital.
    O certo é que também não haveria muito por onde procurar numa terra do interior.
    João não voltara. O pai pedira ao sargento da Guarda para indicar para todo o lado
    que o filho tinha desaparecido.
    Passaram-se dias e nada.
    Era agora a mãe que ia ao poço e levava a lancheira ao marido, lá para cima, para as obras,
    e quem deitava o milho no charco das galinhas.
    Era agora a mãe que fazia aquilo tudo e sem gritar.
    O pai, ainda mais bêbado -  saía sempre do trabalho com os amigos -, e à noite... pobre mulher ...
    João não voltava.
    Dias depois, num jornal da capital, com uma fotografia de uma criança, escrevia-se a notícia :
    "Foi encontrada nesta cidade, a dormir no cais de mar, uma criança que aparenta ter
    a idade de nove anos e diz chamar-se João.
    Recolhida pela Instituição ... aguarda que alguém de família a venha buscar.
    Perante as averiguações feitas deve tratar-se de um caso de fuga do lar.
    Quaisquer indicações sobre a sua identidade deverão ser comunicadas para...".
    Pobre João. Muito pobre João.
    Fugiste no teu sonho real de olhar o mar e encontraste-o.
    Meu pobre João de olhos verdes no azul do mar longínquo.
    Olhaste o mar, nada mais.
    Amanhã voltarás à tua barraca de madeira e zinco, e lata, e lama .. e lágrimas.
    Mas não esqueças, João, que os sonhos das crianças são reais em parte.
    Descobre o que falta de real ao teu sonho e serás UM HOMEM.
    E se, entretanto, tiveres de chorar, chora.
    Chora e sem vergonha, que um homem, não deixando de ser homem, também chora.
    E sobretudo recorda :
    Que as lágrimas dos teus olhos verdes no azul do mar longínquo são a esperança,
    são a seiva que torna  as árvores fortes.

Nota: O presente conto foi publicado em 29 de Maio de 1976, no suplemento de fim-de-semana nº.17, do jorna "o diário", conforme imagem  no post "O Princípio".
Em 1978 é republicado no livro " De coração na mão", edição de autor.

  
   






6 comentários:

cão sem raiva disse...

o sub-título é-me familiar, ou seja, também se aplica na minha pessoa.
Quanto ao conto, não consigo lê-lo, mas gostaria.
:)

Miguel Gomes Coelho disse...

Já cá está, Cão sem Raiva.
Houve um pequeno desajuste.
Obrigado pelo interesse.
Um abraço.

Maria Josefa Paias disse...

Miguel,

Já li e gostei muito deste seu conto.
Fico ansiosa por mais.
Um grande abraço.

Miguel Gomes Coelho disse...

Maria Josefa,
Ainda bem, fico contente.
Um abraço.

Anónimo disse...

Adorei o seu conto, T. Mike... adorei e associei-o como resposta ao comentário que deixei no blogue Sustentabilidade, naquele filme que lhe tinha falado...
Realmente, dá para reflectir.
O sonho não pode morrer, mas a vida não pode ser uma irrealidade... por isso tenho de chorar.

Um abraço meu grande Amigo e obrigada pelo conforto. :)
Eu não digo que tem Dom?

Miguel Gomes Coelho disse...

Fada,
Obrigado.
Este conto tem como imagem subsjacente, e porque escrito muito antes da Revolução de 1974, o que eram os bairros de lata naquela altura. Contudo, com a devida aferição não deixa de ser actual.
Mas a seiva que faz as árvores fortes é feita de esperança...e mais qualquer coisa, hoje em dia.
Um abraço forte.