terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Carnaval ?




Quotidianamente
a perseguição
sempre      a máscara
no fingimento permanente desta peça.

Que importa quanto um homem meça ?

Que importa ?

O importante é ficar
sempre distante
cristalizar em suspensão
ter sempre saída para um aperto de mão.

Mas quem homem
é capaz de ficar quêdo ?

Não é homem !
Não é homem !

Que um homem tem medo
mas sentir na boca o gosto azedo
da traição ulcerada
é vómito      agonia lenta
ser podre      muito podre
vale mais sedr nada !

Mas quotidianamente
de novo a hipocrisia ...

E a marcha arranca e ri ...
que importa quem sofra acolá ?
O que importa é quem ri aqui !

Quem importa     quem desce
as areias movediças
que importa quem decresce ?
Vivam as caras postiças
que as faces não mostram
antes ignoram
porque nem sequer fingem
e morrem
de pedras roliças feitas
sem arestas nem gumes
acres     cruas
pulverolentas
prostitutas.

Prostitutas !
Sim, prostitutas !

Vendidas e definhadas
cada dia mais vendidas
mais pulverolentas     putrefactas.

Pasmo de nojo...
Cuspo !

De Coração na Mão - Ed. de Autor -1978


sábado, 13 de fevereiro de 2010

Rogo

1305860647783_f.jpg (320×320)

Olha para mim!
Olha para mim !!
Olha para mim, por favor!

Repara,
não sou só carne...

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Memória (4)

                       

  PANFLETO

O poeta não mais se sentou para escrever.
Os seus poemas foram apreendidos.
Não mais se ouviu falar do poeta
porque o poeta foi preso.

E interrogaram o poeta
e torturaram o poeta
mas o poeta não gritava
mas os olhos do poeta gritavam
não de dor mas de raiva;
e os olhos do poeta tinham lágrimas
mas as légrimas não eram palavras do poeta.

Reconsiderou:
O poeta jurara não chorar
                       não voltar a chorar
e o poeta deixou de chorar
e o poeta começou a rir
e bateram no poeta por ele rir
enquanto devia chorar pela tortura;
e queriam que o poeta falasse
mas só recitava os seus poemas de ataque
porque o poeta jurara não denunciar
porque o poeta jurara continuar
a olhar o mundo nos seus olhos de poeta
porque queria continuar a ser poeta.

O poeta queria continuar a falar livre
e roubaram a fala ao poeta;
o poeta queria continuar a escrever
e roubaram a escrita ao poeta;
e quizeram roubar-lhe o pensamento
mas o poeta continuou a pensar
e o poeta recomeçou a olhar
e roubaram os olhos ao poeta
por ser perigoso um poeta olhar.

Cego, mudo e sem escrita
mandaram o poeta embora
e o poeta foi passear na rua
e o poeta era cego
e o poeta era mudo
e o poeta não podia escrever
e voltaram a prender o poeta
porque os outros olhavam para ele
e reconheciam o poeta
porque ele era o poeta
e continuava a falar
                      a ver
           e a escrever
nos olhos das pessoas que passavam.
E o poeta foi condenado
e mataram o poeta
e enterraram o poeta
mas o poeta continuou a viver
na memória os que o conheceram
                                          leram
                                       falaram
                                   e olharam
porque um poeta não se mata
                           não se cala
                           não se venda
                           nem se vende
porque é POETA.

E quizeram lavar o povo
para desaparecer dele o poeta
mas o poeta era o povo
e até ao último homem-são
existiria sempre o poeta.

O poeta está morto
mas vive
vive sempre
enquanto houver homens que lutem
que digam a pleno peito
sem medo e com orgulho
EU-SOU-POETA !!

Viva o poeta !
Viva o Povo !
Viva o Povo que é Poeta !

Março, 1971
                                                             




Memória (3)


Em 28 de Fevereiro de 1975 teve lugar em Benfica, no Liceu D. Pedro V,  o 1º.Recital de Poesia Revolucionária, numa organização da Secção do Partido Socialista.
Bons tempos! Hoje talvez fosse inacreditável juntar numa só realização os vultos das letras que ali se reuniram e leram trechos de obras suas, os declamadores consagrados e os desconhecidos que leram escritos de sua autoria.
Não, não estou a brincar!
Ora vejam:
Maria Barroso, Virgílio Ferreira, Mário Cesariny de Vasconcelos, Álvaro Guerra, Dórdio Guimarães, Raúl de Carvalho, Natália Correia, Jorge Guimarães,Manuela Machado, Catarina Avelar, Mário Parra, Lurdes Norberto, Agostinho Teixeira e este vosso criado que disse um poema intitulado "Panfleto"  que havia escrito nos idos de 1971.
Com casa cheia e gente de pé  falou-se  e cantou-se  a Liberdade .
35 anos depois ainda recordo o facto com emoção.
Nota: Dada a extensão publicarei o "Panfleto" noutro post.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Memória (2)


                         II

Concentrei-me sobre a máquina de escrever.
Os meus olhos deixaram de ver
e o meu cérebro
                         de pensar
naquele momento deixei mesmo
                                                de amar.
Cada vez mais turva
a retina e a mente
descreviam a curva descendente
para entrar no subconsciente.
E apareceram-me nos lábios frases estranhas
ruídos inaudíveis
                         ecos de entranhas
marcas de um tempo sempre adquirido
na hereditariedade
                            do homem primata
não sei o ano nem a data
mas era humana de certeza
a história que contei
nos gritos que dei
nas palavras que disse em reza.
..................................................................
Voltei a mim
olhei-me ao espelho
estava lívido
e no chão os meus pés rolavam
por sobre pequenas pérolas de fel".

Nota: Os poemas constantes destes postes (Memória 1 e 2) foram republicados
no livro "De Coração na Mão", edição de autor, 1978.
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Memória (1)


Em 19 de Março de 1972, o Jornal do Fundão, do saudoso António Paulouro, procedeu à minha primeira publicação de poemas.

        I.
           Exame real
         específico
              microscópio.

           Uma célula
                 de pensamento
            em reacção
               em suspensão
                      em decantamento.

                Congelamento
  total
                desintegração
    global
              aquecimento
            moderado.
                             Resultado:
                            Ser hialino
                                  microscópico
                                  neuitralizado.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

O Conto de João Olhos no Mar



1. João. Ó João...
    Ah, onde é que te meteste filho de um ...
    Ó, João...
    João, vai à "auga".
    Ó, João...
    Vai dar milho às galinhas.
    Arre! Onde se meteu o malandro...
    Ó, João...
    Vai levar o comer ao teu pai.
    Ó, João...
    Vem cá João, olha que apanhas porrada.
    João ...

2. João tem nove anos.
    Nove anos de vida, de lama, de charco, de choro.
    Onde estás tu João? agora pergunto eu.
    João está sentado no alto do açude que fica por detrás da fila de barracas,
    ao fundo da azinhaga.
    João não ouve chamar. João apenas sente o sol bater-lhe de chapa na cara;
    semicerra os olhos para ver mais longe; João não vê as podres casas de madeira
    que se espalham a seus pés; não vê nada que 
    seja miséria; João está cego na sua paisagem mais real.
    Nos seus nove anos, João sonha apenas com um brinquedo qualquer de felicidade,
    mesmo fortuita. 
    João não vê, mas finge ver o mar. Esse mar azul distante como o verde dos seus olhos.
    Que estará por detrás do mar ?
    João não ouve, sonha e não quer despertar.
    Súbito, uma forte cutilada no pescoço lembra-lhe de novo a existência de algo
    mais real e cruel - o  Mundo.
    João sentiu a pancada seca. Olhou de lado e viu a figura da mãe, pesada, corpulenta,
    bestial no tratar, cara enrugada, mas olhos amantes.
    - Então, João, não ouviste chamar ?
    Queres apanhar com o tamanco ?
    Deixa o teu pai chegar e eu logo lhe direi; talvez então ouças melhor ao som da porrada.
    João salta do seu poiso e foge.
    -Anda cá João.
    Tu não ouves ? Anda cá.
    Ai se eu te apanho...
    João...
    João desaparecera, entretanto, atrás do açude.
    A mãe grita, mas já não o consegue ver. Corre. João, no entanto, mais lesto, desaparece.

3. São dez e meia da noite.
    Na barraca ao fundo da azinhaga ainda se encontra aceso o tosco candeeiro a petróleo.
    João ainda não apareceu.
    Entremeando o choro gritado da mães ouvem-se as palmadas secas do pai que,
    meio embriagado - pois à saída do trabalho tinha ido com os amigos - dá largas à sua
    loucura agredindo a pobre mulher.
    Que fazer?
    Esquisita forma de mostrar carinho e temor. No meio da pancada, da brutalidade,
    aqueles dois seres, nos gestos quase primitivos, demonstram o seu carinho e o seu cuidado
    pelo filho desaparecido.
    A algazarra atrai os vizinhos.
    Em frente da casa de madeira e zinco, e lata, e lama, uma pequena multidão de homens,
    mulheres e crianças assiste, confirma e opina sobre o acontecimento.
    Ao fim de meia hora, a história contada aos que a pouco e pouco vão chegando é uma
    sombra da realidade :
    "João fugira de casa aliciado por um homem de vida duvidosa e que o levara não sei para onde
    para fazer não sei o quê".
    Era difícil a toda aquela gente pensar noutra hipótese. João nunca fugiria porque uma criança
    não pode fugir ; porque a criança só tem de obedecer e construir-se a mesma sombra
    que os pais se construíram.   
    Quase uma imposição de clã.
    Entretanto a mãe chorava, o pai batia, os vizinhos assistiam e João não aparecia.
    Opina uma velha :
    - Vão à polícia, ao hospital ...
    - É isso, é isso ...
    Pai e mãe correm porta fora, rompendo entre os circunstantes.
    É preciso encontrar o seu João.

4. Fizera-se manhã.
    João não aparecera. Nada na polícia, nem no hospital.
    O certo é que também não haveria muito por onde procurar numa terra do interior.
    João não voltara. O pai pedira ao sargento da Guarda para indicar para todo o lado
    que o filho tinha desaparecido.
    Passaram-se dias e nada.
    Era agora a mãe que ia ao poço e levava a lancheira ao marido, lá para cima, para as obras,
    e quem deitava o milho no charco das galinhas.
    Era agora a mãe que fazia aquilo tudo e sem gritar.
    O pai, ainda mais bêbado -  saía sempre do trabalho com os amigos -, e à noite... pobre mulher ...
    João não voltava.
    Dias depois, num jornal da capital, com uma fotografia de uma criança, escrevia-se a notícia :
    "Foi encontrada nesta cidade, a dormir no cais de mar, uma criança que aparenta ter
    a idade de nove anos e diz chamar-se João.
    Recolhida pela Instituição ... aguarda que alguém de família a venha buscar.
    Perante as averiguações feitas deve tratar-se de um caso de fuga do lar.
    Quaisquer indicações sobre a sua identidade deverão ser comunicadas para...".
    Pobre João. Muito pobre João.
    Fugiste no teu sonho real de olhar o mar e encontraste-o.
    Meu pobre João de olhos verdes no azul do mar longínquo.
    Olhaste o mar, nada mais.
    Amanhã voltarás à tua barraca de madeira e zinco, e lata, e lama .. e lágrimas.
    Mas não esqueças, João, que os sonhos das crianças são reais em parte.
    Descobre o que falta de real ao teu sonho e serás UM HOMEM.
    E se, entretanto, tiveres de chorar, chora.
    Chora e sem vergonha, que um homem, não deixando de ser homem, também chora.
    E sobretudo recorda :
    Que as lágrimas dos teus olhos verdes no azul do mar longínquo são a esperança,
    são a seiva que torna  as árvores fortes.

Nota: O presente conto foi publicado em 29 de Maio de 1976, no suplemento de fim-de-semana nº.17, do jorna "o diário", conforme imagem  no post "O Princípio".
Em 1978 é republicado no livro " De coração na mão", edição de autor.

  
   






segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010